Espiral – Geovani Martins (O Sol na Cabeça)
Começou
muito cedo. Eu não entendia. Quando passei a voltar sozinho da escola, percebi
esses movimentos. Primeiro com os moleques do colégio particular que ficava na
esquina da rua da minha escola, eles tremiam quando meu bonde passava. Era
estranho, até engraçado, porque meus amigos e eu, na nossa própria escola, não
metíamos medo em ninguém. Muito pelo contrário, vivíamos fugindo dos moleques
maiores, mais fortes, mais corajosos e violentos. Andando pelas ruas da Gávea,
com meu uniforme escolar, me sentia um desses moleques que me intimidavam na
sala de aula. Principalmente quando passava na frente do colégio particular, ou
quando uma velha segurava a bolsa e atravessava a rua pra não topar comigo. Tinha
vezes, naquela época, que eu gostava dessa sensação. Mas, como já disse, eu não
entendia nada do que estava acontecendo.
As
pessoas costumam dizer que morar numa favela de Zona Sul é privilégio, se
compararmos a outras favelas na Zona Norte, Oeste, Baixada. De certa forma,
entendo esse pensamento, acredito que tenha sentido. O que pouco se fala é que,
diferente das outras favelas, o abismo que marca a fronteira entre o morro e o
asfalto na Zona Sul é muito mais profundo. É foda sair do beco, dividindo com
canos e mais canos o espaço da escada, atravessar as valas abertas, encarar os
olhares dos ratos, desviar a cabeça dos fios de energia elétrica, ver seus
amigos de infância portando armas de guerra, pra depois de quinze minutos estar
de frente pra um condomínio, com plantas ornamentais enfeitando o caminho das
grades, e então assistir adolescentes fazendo aulas particulares de tênis. É
tudo muito próximo e muito distante. E, quanto mais crescemos, maiores se
tornam os muros.
Nunca
esquecerei da minha primeira perseguição. Tudo começou do jeito que eu mais
detestava: quando eu, de tão distraído, me assustava com o susto da pessoa e,
quando via, era eu o motivo, a ameaça. Prendi a respiração, o choro, me
segurei, mais de uma vez, pra não xingar a velha que visivelmente se incomodava
de dividir comigo, e só comigo, o ponto de ônibus. No entanto, dessa vez, ao
invés de sair de perto, como sempre fazia, me aproximei. Ela tentava olhar pra
trás sem mostrar que estava olhando, eu ia chegando mais perto. Ela começou a
olhar em volta, buscando ajuda, suplicando com os olhos, daí então colei junto
dela, mirando diretamente a bolsa, fingindo que estava interessado no que
pudesse ter ali dentro, tentando parecer capaz de fazer qualquer coisa pra
conseguir o que queria. Ela saiu andando pra longe do ponto, o passo era lento.
Eu a observava se afastar de mim. Não entendia bem o que sentia. Foi quando,
sem pensar em mais nada, comecei a andar atrás da velha. Ela logo percebeu.
Estava atenta, dura, no limite de sua tensão. Tentou apertar o passo pra chegar
o mais rápido possível a qualquer lugar. Mas na rua era como se existíssemos
apenas nós dois. Por vezes eu aumentava minha velocidade, ia sentindo o gosto
daquele medo, cheio de poeira de outras épocas. Depois diminuía um pouco,
permitindo que ela respirasse. Não sei quanto tempo durou tudo aquilo,
provavelmente não mais que alguns minutos, mas, para nós, era como se fosse
toda uma vida. Até que ela entrou numa cafeteria e segui meu caminho.
Passado
o turbilhão, fiquei com nojo de ter ido tão longe, lembrando da minha avó,
imaginando que aquela senhora também devia ter netos. Porém, esse estado de
culpa durou pouco, logo lembrei que aquela mesma velha, que tremia de pavor
antes mesmo que eu desse qualquer motivo, com certeza não imaginava que eu
também tivera avó, mãe, família, amigos, essas coisas todas que fazem nossa
liberdade valer muito mais do que qualquer bolsa, nacional ou importada.
Por
mais que às vezes me parecesse loucura, sentia que não poderia parar, já que
eles não parariam. As vítimas eram diversas: homens, mulheres, adolescentes e
idosos. Apesar da variedade, algo sempre os unia, como se fossem todos da mesma
família, tentando proteger um patrimônio comum.
Veio
a solidão. Ficava cada vez mais difícil enfrentar qualquer assunto banal. Nem
nos livros conseguia me concentrar. Não queria saber se chovia ou fazia sol, se
no domingo daria Flamengo ou Fluminense, se Carlos terminou com Jaque, se o
cinema estava em promoção. Meus amigos não entendiam. Não podia contar o motivo
de minhas ausências, e, aos poucos, fui sentindo que me afastava de gente
realmente importante para mim.
Com
o passar do tempo essa obsessão foi ganhando forma de pesquisa, estudo sobre
relações humanas. Passei então a ser tanto cobaia quanto realizador de uma
experiência. Começava a entender com clareza meus movimentos, decifrar os
códigos dos meus instintos. No entanto, a dificuldade de entender as reações de
minhas vítimas foi se mostrando cada vez maior. São pessoas que vivem num mundo
que não conheço. Sem contar que o tempo que tenho pra analisá-las frente a
frente é curto e confuso, já que preciso atuar simultaneamente. Percebendo
isso, cheguei à conclusão de que precisaria me concentrar num único indivíduo.
Não
foi nada fácil encontrar essa pessoa. Me perdia entre as personalidades, não
conseguia escolher. Tinha medo. Até que um dia, andava pela rua, era noite
alta, um homem virou a esquina no mesmo momento que eu, trombamos. Ele levantou
os braços, se rendendo ao assalto. Eu disse: “Fica tranquilo. E vai embora”.
Depois de muito tempo sentia mais uma vez aquele ódio primeiro, descontrolado,
aquele que enche os olhos d’água. Há tempos já tinha me abstraído da
humilhação, e até mesmo da vingança. Encarava o desafio com o olhar cada vez
mais distante, científico. Mas alguma coisa nos movimentos daquele homem — o
levantar de braços, a expressão de terror — fez reacender aquela chama do dia
em que fui atrás da minha primeira vítima. Era ele. Só podia ser ele. Esperei
um pouco e fui atrás, invisível.
Mário
é o nome dele. Consegui pescar essa informação observando de perto, próximo ao
seu local de trabalho, enquanto ele cumprimentava seus conhecidos pela rua. Tem
duas filhas pequenas, uma pela casa dos sete, oito anos, a outra com quatro, no
máximo cinco. Não consegui descobrir o nome delas, pois, quando estava com a
família, eu acompanhava de longe, pra não atrair suspeitas. Acabei batizando de
Maria Eduarda a mais velha e Valentina a mais nova. Nomes compatíveis com suas
carinhas de crianças bem alimentadas. À esposa dei o nome de Sophia. Olhando a
partir da minha distância, pareciam felizes. No dia em que foram fazer um
piquenique no Jardim Botânico, brincavam, comiam bolos, doces, observavam
juntos as plantas. Um verdadeiro comercial de margarina, com exceção da babá,
que os seguia toda de branco.
Durante
o primeiro mês, forcei nosso encontro muitas vezes. Em algumas ele ficou
intimidado com minha presença, em outras parecia não notar ou não se importar.
Eu ficava me perguntando quando é que ele daria conta de minha existência. Três
meses. Até o dia em que li em sua expressão o horror da descoberta. Muita coisa
mudou depois disso. Mário passou a ser outra pessoa. Sempre preocupado, olhando
em volta. Eu observava. Às vezes o perseguia claramente, via sua tensão
crescer, até quase explodir. Então parava, entrava em algum lugar, fingia
naturalidade.
Chegamos
ao momento presente. Passei uns dias rondando um pouco mais perto de sua casa.
O que antes era privilégio, morar perto do trabalho, virou um dos seus maiores
motivos de preocupação. Ele tentava me despistar dando voltas pelos
quarteirões, mas seu esforço era inútil, já que há bastante tempo eu sabia onde
ficava seu apartamento. Foram dias complicados pra ambas as partes, eu sentia
que dava um passo definitivo, só não tinha certeza de onde me levaria esse
caminho. Até que entramos na jogada final. Comecei a segui-lo, como das outras
vezes, num lugar próximo a sua casa. Mas dessa vez ele não fez questão de me
despistar, pelo contrário, pegou o caminho mais rápido até o apartamento. Suava
pelas ruas, a cara vermelha. Também eu tremia diante das possibilidades de
desfecho.
Ele
entrou no prédio, cumprimentou o porteiro feito máquina, subiu. Apenas uma
janela. Era o que se mostrava do apartamento no meu campo de visão. Fiquei
mirando fixamente aquele ponto, sem me esconder dessa vez; se eu o visse,
também ele me veria. Alguns minutos depois apareceu Mário, completamente
transtornado, segurava uma pistola automática. Sorri pra ele, percebendo
naquele momento que, se quisesse continuar jogando esse jogo, precisaria também
de uma arma de fogo.
Para Refletir:
1) Há dois
tipos de muros comentados pelo autor no final do segundo parágrafo, quais são?
O quinto parágrafo nos ajuda a perceber esses muros, identifique-o e reflita
com seus colegas.
2) A partir
do quarto parágrafo do conto, pense em como a alteridade pode mudar nossa forma
de lidar com o outro. Discuta com seus colegas.
3) A
expressão utilizada pelo escritor, presente no terceiro parágrafo do conto, “daí
então colei junto dela”, revela um pouco sobre quem é este narrador personagem.
Diante disso, podemos dizer que se trata de um narrador neutro? Qual é a visão
que ele possui a cerca das pessoas que persegue?
4) Reflita
sobre o uso de expressões coloquiais do autor em sua obra literária e os
limites que esse espaço proporciona ao escritor.
5) Ao final
do conto, nos é revelado o tamanho do muro existente entre os personagens, de
qual forma poderíamos ajudar para diminuirmos as distâncias entre ambos os lados?
Reflita entre seus colegas.
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